A especialização de varas judiciais em matéria falimentar é tema recorrente no debate sobre a necessidade de um ambiente previsível de negócios. A experiência do TJ-SP ilustra com propriedade este contexto.
No ano de 2005, com a criação de duas Varas Especializadas em Falências e Recuperações Judiciais na Capital e de uma Câmara Reservada à mesma matéria, foi possível sedimentar a jurisprudência em formação.
O sucesso da medida implicou, em 2011, a criação de duas Câmaras Especializadas em Direito Empresarial, com o escopo de reunir o julgamento de toda a matéria de direito comercial.
As estruturas dessas varas levaram em conta aspectos locais que não podem ser simplificados por critério pecuniário
Recentemente, no final de 2017, houve a expansão da especialização, com a instalação de duas Varas de Direito Empresarial e Conflitos de Arbitragem na Capital e da 3a Vara de Falências e Recuperações Judiciais.
A experiência do tribunal paulista, por certo, constitui exemplo a ser seguido por outros tribunais estaduais, obviamente respeitadas as peculiaridades locais, o que será avaliado por cada tribunal, dada a competência absoluta destes, a teor do artigo 125 da Constituição Federal, para a iniciativa de projetos de lei sobre organização judiciária.
O mesmo acontece com a chamada “regionalização das Varas de Recuperação Judicial e de Falência”. A bem-sucedida experiência paulista demonstra que a especialização é salutar, por proporcionar eficiência, celeridade e segurança jurídica.
Nesta ótica, causa espécie o teor do Projeto de Lei 10.220/2018, no qual, entre outras tantas alterações questionáveis ao sistema de insolvência brasileiro, há previsão de que nas recuperações judiciais e extrajudiciais e convolações em falência de empresas com passivos superiores a 300 mil salários mínimos, será competente o juízo da capital do Estado ou do Distrito Federal onde se localizar o principal estabelecimento, regra inaplicável à decretação de falência.
Prevê o referido projeto, ainda, que tais regras seriam aplicáveis enquanto não houver, nos Estados, varas regionais
especializadas. A competência, entendida como melhor preparo técnico dos magistrados das varas especializadas das
capitais dos Estados, seria a justificativa para a alteração legislativa.
Ocorre que o fundamento para a inserção da nova regra sobre competência esbarra justamente em regra constitucional que prevê a competência dos Tribunais para iniciativa de leis de organização judiciária, ou seja, o constituinte entendeu tenham os tribunais locais melhor aptidão para decidir sobre a criação e a divisão das competências entre as varas judiciais.
Logo, parece açodado festejar a pretendida alteração legislativa, primeiro porque francamente inconstitucional e, segundo, porque questionável reconhecer como melhor caminho a remessa desses processos, com base no valor do passivo, às varas especializadas das capitais. As estruturas estabelecidas para essas varas levaram em conta aspectos locais que não podem ser simplificados com a adoção do critério pecuniário.
Ademais, excluir a falência desta regra afronta toda e qualquer sistemática sobre divisão de competências de processos concursais e, o que é mais grave, revela a aparente intenção do legislador de relegar definitivamente as falências e recuperações judiciais de menor valor ao limbo, preocupando-se apenas com a recuperação das empresas de grande porte, como se ambos os institutos não visassem à busca de soluções para as empresas em crise e como se o Poder Judiciário devesse tratar de forma privilegiada grandes empresas, desconsiderando o disposto no art. 170, IX, da CF.
Não há dúvida de que a criação de Varas Regionais Especializadas pode ser uma solução eficiente em determinados
Estados, como é o caso de São Paulo, no qual há o Projeto de LC n° 47/2012, de iniciativa do TJ-SP, e que no último dia 13 de junho recebeu proposta de alteração substitutiva, com o escopo de adequar a proposta à realidade social atual.
A proposta de criação de varas regionais de falência e recuperação no Estado de São Paulo partiu da constatação, pela administração do TJ-SP, da necessidade e da viabilidade da medida, modelo que, conforme peculiaridades específicas, poderá ser adotado por outros tribunais estaduais. De qualquer sorte, não compete ao legislador federal disciplinar critérios ou as comarcas estaduais nas quais deverão ser instaladas varas especializadas, sob pena de afronta ao pacto federativo.
Em síntese, a regionalização das varas de insolvência envolve complexa questão sobre competência para o julgamento de processos concursais, mas cuja iniciativa é exclusiva dos Tribunais de Justiça estaduais. Neste tema, portanto, também não há nenhum motivo para aplaudir o Projeto de Lei 10.220/2018.
Manoel de Queiroz Pereira Calças e Renata Mota Maciel Dezem são, respectivamente, presidente do TJ-SP (biênio 2018/2019), ex-corregedor-geral da Justiça e professor de Direito Comercial da USP, PUC-SP,ITE/Bauru e Uninove; juíza de Direito do TJ-SP. doutora em direito comercial pela USP, professora do programa de mestrado em direito da Uninove.
Fonte: O Valor