O crescente número de casos de recuperação judicial de empresas e a percepção de que os planos apresentados pelas devedoras impõem grandes sacrifícios aos credores fazem com que muitos questionem a razão de existir dessa ferramenta jurídica. Se a empresa é insolvente e não tem condições de pagar os seus credores, qual seria a razão de tentar salvá-las? Por que razão impor aos credores um prejuízo a fim de manter o funcionamento da empresa devedora? Não seria melhor liquidá-la?
A resposta a essa pergunta passa, necessariamente, pela constatação de que, diante de um cenário de crise, pode ser melhor (ou menos pior) para os credores manter a empresa devedora em funcionamento. Deve-se fazer uma comparação entre o valor de liquidação da empresa e o valor gerado com o funcionamento da empresa. Se a liquidação dos ativos da empresa gerar menos valores do que a manutenção de seu funcionamento, é melhor para os credores – em geral – que a empresa continue operando.
Imagine uma situação bastante simples, inspirada no exemplo do professor de Harvard, Thomas Jackson: a empresa é um lago com 1.000 peixes. É possível que sejam pescados 500 peixes por ano, deixando-se no lago os outros 500 peixes a fim de que procriem, viabilizando que no ano seguinte o lago tenha novamente os 1.000 peixes. Assim, nesse ano seguinte será possível pescar novamente 500 peixes e assim por diante. Fazendo-se uma avaliação dessa empresa – bem simplista – e trazendo-se ao valor presente, chega-se à conclusão de que ela vale o equivalente a 2.500 peixes, pois é isso que a empresa produziria em 5 anos.
O funcionamento de uma empresa gera empregos, tributos, produtos, serviços e circulação de riquezas
Caso essa empresa seja liquidada, com a pesca e a venda de todos os peixes do lago, o valor máximo a ser atingido será equivalente a 1.000 peixes (exaurindo-se todos os peixes, sem possibilidade de haver pescaria nos anos seguintes).
Fazendo-se um simples cálculo, é melhor para o credor manter a empresa em funcionamento e receber 2.500 peixes, do que liquidar a empresa e receber apenas 1.000 peixes.
Nesse caso a liquidação da empresa representará um prejuízo maior para os credores do que a manutenção de suas atividades. Evidente, assim, que interessa ao mercado tentar ajudar a empresa a manter seu funcionamento.
Vale destacar que essa solução será melhor para os credores em geral e não necessariamente para os credores individualmente. A comunidade de credores terá 2.500 peixes para dividir, ao invés de apenas 1.000. É certo que alguns credores receberão mais peixes que outros, dependendo da negociação e dos privilégios legais. Mas, no geral, essa solução será melhor para o conjunto de credores.
Além do interesse do mercado, representado pela vontade do conjunto de credores da empresa em crise, a manutenção de suas atividades atende também a interesses muito maiores, de natureza pública e social. O funcionamento da empresa gera empregos, tributos, produtos, serviços e circulação de riquezas.
Nesse sentido, o encerramento de suas atividades, por meio da liquidação de seus ativos, representaria o desaparecimento desses benefícios econômicos e sociais (desemprego, queda na arrecadação de tributos etc).
Há casos em que o encerramento da empresa afeta o regular funcionamento de todo um setor da economia, prejudicando a atividade de dezenas de outras empresas que também não conseguirão prosseguir suas atividades em razão da dependência empresarial com aquela que fechou suas portas.
Assim, se a empresa tem condição de gerar valores com o seu funcionamento, será melhor para os credores e, também, para a sociedade como um todo que suas atividades sejam preservadas. É essa a função social da recuperação judicial de empresas, que vem sendo reiteradamente reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça.
Alguns críticos afirmam que a liquidação da empresa também poderia abrir espaço para que outro agente econômico ocupe o seu lugar, desenvolvendo atividade saudável, fazendo voltar os empregos, tributos, produtos, serviços etc. Assim, sob o ponto de vista social, não haveria justificativa para impor aos credores sacrifícios para manter o funcionamento da empresa devedora.
É certo que numa economia com perfeito funcionamento, o agente econômico que desapareceu em razão da sua insolvência poderia ser mesmo substituído por outro, que passaria a exercer atividade geradora de empregos, tributos, produtos e serviços, suprindo a falta daquele agente que foi ineficaz na sua atuação.
Ocorre que, mesmo em economias perfeitas, essa reposição levará um tempo para acontecer. E as pessoas e o Estado têm necessidades prementes que não podem aguardar a recomposição econômica daquela atividade.
No Brasil, essa situação é ainda mais grave, visto que a crise econômica impede, na prática, que uma atividade liquidada seja substituída por outra em tempo razoável, consolidando-se os prejuízos sociais e econômicos decorrentes do encerramento da empresa.
Por essa razão, tem-se que a função social da recuperação judicial tem grande relevo para o bom funcionamento da economia e para a estabilidade da sociedade brasileira, sendo vedado que interesses particulares e privados se transformem numa barreira intransponível à realização do interesse social.
Daniel Carnio Costa é juiz titular da 1a Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo, juiz auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça (CNJ) -2018/2020 e professor doutor de direito comercial da PUC/SP.
Fonte: Valor