Discussão processual prejudica recuperação judicial da Gradiente

Uma mera questão processual tem atrasado a reorganização econômica, administrativa e financeira de empresas, como a da Gradiente. A fabricante de eletroeletrônicos discute com credores na Justiça qual seria o Estado competente para acompanhar seu processo de recuperação judicial. Iniciado em Manaus, foi transferido para São Paulo. Mas poucos dias depois voltou para a capital amazonense, até que os desembargadores da 3a Câmara do Tribunal de Justiça (TJ-AM) analisem o mérito do conflito.

O vai e vem, que impacta tanto empresas quanto credores, nasceu das diversas possíveis interpretações da Lei de Falência e Recuperação Judicial – no 11.101, de 2005. O artigo 3o da norma estabelece apenas que a competência é do “local do principal estabelecimento do devedor”, sem defini-lo expressamente. E nem o projeto de lei do governo federal, que pretende atualizar a Lei 11.101, resolve o imbróglio. Apenas repete a mesma expressão da lei atual. A proposta só obriga a criação de varas especializadas em recuperação judicial nas capitais dos Estados do país.

O advogado Júlio Mandel, do Mandel Advocacia, lembra que a legislação não é clara desde 1945. “As teses mais defendidas são: de onde parte o comando dos negócios, onde localiza-se a sede estatutária e em que lugar concentram-se os ativos.

Quando as três coincidem, não há problema. Quando não, começa a confusão”, diz o especialista.
O conflito sobre qual Estado seria competente para analisar o caso da Gradiente começou no ano passado, após a
fabricante descumprir plano de recuperação extrajudicial homologado em São Paulo. O fato levou credores a entrar com ações de cobrança de dívidas (execuções). Em seguida, a Gradiente resolveu solicitar a proteção da recuperação judicial em Manaus, o que foi aceito em maio deste ano.

Credores da Gradiente, o China Construction Bank do Brasil e o Banco Safra, foram, então, à Justiça. Conseguiram decisão da 11a Vara Cível e de Acidentes de Trabalho de Manaus para transferir a recuperação para São Paulo (processo no 0617552-11.2018.8.04. 0001). A sentença foi considerada importante para credores de empresas com atividades na Zona Franca de Manaus, que passam pela mesma situação.

O advogado Diogo Rezende de Almeida, do escritório Galdino Coelho Mendes Advogados, que representa o China
Construction Bank, argumentou no processo que a atividade empresarial da Gradiente, inclusive as assembleias de
acionistas, são realizadas em São Paulo. “Somado a isso, observa-se que a IGB [Grupo Gradiente] possui um grande
número de filiais, sendo a maior parte delas localizada em São Paulo, conforme se constata da certidão da Junta Comercial (Jucesp).”

Almeida também anexou ao processo algumas decisões judiciais. “A jurisprudência de nossos tribunais, interpretando a Lei no 11.101, de 2005, se consolidou no sentido de que é competente o juízo da localidade onde se encontra o principal estabelecimento, ou seja, o local de maior fluxo econômico ou o local do qual emanam as decisões administrativas”, diz o advogado. Procurado pelo Valor, o Safra informou que não se manifesta sobre processos em andamento.

Segundo a juíza Lia Maria Guedes de Freitas, o principal estabelecimento da empresa em processo de recuperação judicial, extrajudicial ou falência “deve ser entendido como aquele em que se concentra o maior volume de negócios por ela desempenhados, tudo de modo a facilitar a instauração do concurso de credores, a arrecadação de bens da empresa, bem como a satisfação de seus débitos”.

Além disso, de acordo com a decisão, em 2009, no pedido de homologação de plano de recuperação extrajudicial, a
empresa disse que seu principal estabelecimento situava-se em São Paulo.

Mas a decisão favorável aos bancos foi suspensa pela 3a Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas
(agravo de instrumento no 4002905-92.2018.8. 04.0000). Segundo o advogado Gilberto Giansante, que representa a indústria no processo, o objeto social da Gradiente inclui também a administração de imóveis próprios e a maior fonte de renda dela hoje é a locação de imóveis próprios e a manutenção dos seus equipamentos.

“São quatro imóveis muito grandes parcialmente locados, sua sede sempre foi em Manaus [desde 1973] e 95% da receita da companhia advêm de Manaus”, afirma o advogado. “Interpretamos que onde se obtém a maior geração de receita da empresa é de onde emanam as ordens.”

Na decisão, os desembargadores da 3a Câmara do TJ-AM entenderam que “o periculum in mora [perigo da demora]
consubstancia-se na possibilidade de, a qualquer momento, os autos serem remetidos para a comarca de São Paulo (SP), o que geraria prejuízos para as partes e violaria o princípio da eficiência caso, ao final deste recurso, seja declarada como competente a comarca de Manaus (AM)”.

Se a maioria dos credores fica em determinado local não é relevante para se estabelecer onde a recuperação judicial será processada, segundo Giansante. “Não consideramos que isso aconteça no caso da Gradiente, mas se uma recuperação judicial é convertida em falência, logo depois o administrador judicial tem que ir até os bens para avaliar e levá-los à leilão”, diz. “Assim, é melhor que o juízo competente seja o local da maioria dos bens.”

Em março do ano passado, ao analisar o conflito de competência relativo à recuperação judicial da Wind Power Energia, companhia do segmento de energia eólica, a 2a Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, por unanimidade, que o foro competente para o  processamento da recuperação judicial “é aquele onde se situe o principal estabelecimento da sociedade, assim considerado o local onde haja o maior volume de negócios, ou seja, o local mais importante da atividade empresária sob o ponto de vista econômico” (REsp no 147.714).

Para Mandel, na dúvida sobre qual é o principal estabelecimento, deve ser aceita a competência defendida pelo devedor, desde que tenha fundamento. “O pior cenário é ficar discutindo competência, enquanto a Justiça não é aplicada”, afirma.

No caso da Gradiente, por exemplo, Mandel diz que ainda há a chance de o juiz de São Paulo não aceitar a competência. “Nessa hipótese o processo não tramitaria com a celeridade necessária, pois a discussão principal no momento existiria para saber qual é o juiz, enquanto as partes querem uma decisão rápida para o processo de recuperação.”

Fonte: Valor