A Justiça de São Paulo decidiu excluir uma classe inteira de credores da recuperação judicial da fabricante de extintores de incêndio Metalcasty, apesar da determinação expressa da Lei no 11.101, de 2005, que regula o assunto, de que todos devem participar do processo. As beneficiadas são micro e pequenas empresas, que poderão receber os valores devidos integralmente, sem carência e qualquer desconto.
Na decisão, o juiz Paulo Furtado, da 2a Vara de Recuperações Judiciais e Falências de São Paulo, entendeu que a exclusão da classe IV não prejudicaria a recuperação da fabricante. “A crise da recuperanda pode ser superada sem necessidade de atingir os credores microempresários e empresários de pequeno porte”, diz. Da decisão, ainda cabe recurso ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP).
O passivo total declarado na petição inicial para o pedido de recuperação judicial é de R$ 86 milhões, R$ 85,2 milhões são devidos aos chamados credores quirografários (crédito simples, sem qualquer preferência), basicamente bancos, e R$ 776 mil a microempresas e empresas de pequeno porte. Segundo o juiz, os 67 credores da classe IV, com direito a menos de 1% do passivo sujeito à recuperação, “não têm
potencial de causar qualquer dano à atividade da devedora, que tem em caixa aproximadamente dez vezes o passivo perante a classe IV”.
Para Furtado, incluir esses credores seria uma medida desproporcional, “que impõe pesado ônus a quem justamente não poderá se valer de uma recuperação judicial em caso de crise, em razão do elevado custo do processo, insuportável para pequenos empresários”.
O magistrado ainda acrescenta na decisão que “o exercício de um direito, que efetivamente não atende ao interesse de seu titular, mas causa grave mal a outros interessados, deve ser coibido pelo Poder Judiciário” (processo no 1099468- 13.2020.8.26.0100).
Ao considerar então somente os dez principais credores titulares de créditos de cerca de R$ 58 milhões, o juiz determinou que o administrador judicial promova reunião, em 15 dias, entre a recuperanda e esses credores para a mediação no processo. O que, de acordo com a decisão, “poderá facilitar o processo de negociação e até resultar em adesão suficiente a uma conversão da modalidade judicial em extrajudicial”.
Especialista na área, a advogada Maria Fabiana Dominguez Sant’Ana, sócia do PGLaw, afirma que um juiz não pode decidir que classe vai fazer parte ou não do processo de recuperação. “A decisão é complicada. Vai contra a legislação vigente”, diz. Ela acrescenta que o artigo 49 da Lei no 11.101, de 2005, é claro ao afirmar que “estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos”.
Caso a empresa faça os pagamentos desses credores por fora da recuperação judicial, os dirigentes da companhia podem responder por crime falimentar, previsto no artigo 172, da Lei de Recuperação e Falências, segundo Maria Fabiana. O artigo prevê detenção de dois a cinco anos e multa para aquele que favorecer determinado credor antes ou depois da sentença que concedeu a recuperação judicial.
“A decisão deixa a recuperanda totalmente insegura, uma vez que a lei estabelece a inclusão de todos os credores”, diz a advogada. Para ela, a medida gera insegurança para todo o mercado de insolvência, que hoje tem um plano de recuperação judicial fundamentado na lei, com jurisprudência sedimentada, o que pode afastar inclusive investidores estrangeiros, uma vez que as regras não estão claras no Brasil.
O advogado Júlio Mandel, sócio do escritório Mandel Advocacia, concorda que, uma vez
decidida pela recuperação judicial na assembleia de credores, deve-se seguir o que
determina a lei para que exista segurança jurídica no processo. “E a lei é clara ao criar a
classe IV e dizer que todos os credores devem ser incluídos”, afirma o especialista.
A decisão é novidade e causa surpresa, segundo a advogada Laura Bumachar, sócia do escritório Dias Carneiro Advogados. Apesar de entender a fundamentação do juiz Paulo Furtado, do ponto de vista econômico, ela afirma que o entendimento extrapola o que diz a lei, desde o tempo da concordata.
De qualquer forma, a decisão segue a linha já adotada pelo juiz Paulo Furtado em outros processos, ao tentar uma negociação prévia antes da recuperação judicial, por entender que o processo exige sacrifícios tanto do devedor quanto dos credores, ao suspender as cobranças por 180 dias. “É um processo longo, complicado. Essa nova decisão vai nessa esteira, mas não está acolhida pela lei”, diz Laura Bumachar .
O juiz Paulo Furtado, da 2a Vara de Recuperações Judiciais e Falências de São Paulo, é conhecido no meio pelas suas decisões criativas. Recentemente, ele deu permissão para que os próprios credores apresentem um aditivo que lhes proporcione melhorias no caso de uma empresa em recuperação que conseguiu aumentar os seus ganhos durante a pandemia (processo no 0013555-61.2012.8.26.0100). Ele também proferiu decisões que flexibilizam prazos previstos na atual legislação.
Procurados pelo Valor, os advogados da Metalcasty no processo de recuperação e o administrador judicial preferiram não se manifestar sobre a decisão.
Fonte: Valor