O projeto de reforma da lei 11.101/05 e o plano alternativo
Aprovado na Câmara dos Deputados em 26/8/2020 então sob o número 6.229/2005, tramita agora no Senado Federal o PL 4.458/2020, que propõe alterações substanciais à recuperação judicial, extrajudicial e à falência do empresário e da sociedade empresária, reguladas pela lei 11.101/05.
Embora haja um certo consenso quanto ao cabimento de alterações pontuais na lei 11.101/05, notadamente para acelerar o procedimento falimentar, os ajustes propostos no PL 4.458/2020 merecem maiores reflexões e aprimoramentos.
Relevantes problemas da legislação vigente, há muito identificados pelos profissionais atuantes na área, acabaram por não ter proposta de solução satisfatória prevista no projeto ou maiores discussões da comunidade jurídica. É o caso, por exemplo, do financiamento DIP, hoje pouco concedido aos devedores em recuperação judicial por falta de reais incentivos ao financiador.
O projeto, embora trate do tema, propõe como incentivo adicional àqueles que pretendam financiar a empresa em crise a possibilidade de constituição de garantia subordinada sobre ativos do devedor, limitada a eventual excesso resultante da alienação do ativo sobre o qual recair a garantia original e desde que a garantia prioritária não seja alienação ou cessão fiduciária (art. 69-C, §§ 1º e 2º).
Não é preciso dizer que tal proposta muito provavelmente não promoverá a concessão de novos financiamentos. A subordinação da garantia, por si só, servirá de desincentivo ao financiador. Se nem a constituição de garantias em primeiro grau já permitida hoje pelo sistema vigente (desde que autorizada judicialmente se recair sobre bens do ativo permanente) foi suficiente a fomentar a concessão de novos financiamentos, a possibilidade de outorga de garantia subordinada não será capaz de fazê-lo.
Não bastasse, o projeto restringe a possibilidade de oneração de bens (em grau subordinado) a garantias não fiduciárias – cada vez menos utilizadas no mercado, em razão dos privilégios e prioridades de que gozam os credores proprietários fiduciários.
A inspiração para a possibilidade de concessão de garantia subordinada ao financiador muito provavelmente advém do direito norte americano, no qual, porém, os DIP Lenders podem inclusive obter prioridade sobre garantias já existentes à ocasião da concessão do financiamento (priming lien), desde que assegurada proteção adequada ao credor garantido anteriormente. Contudo, no projeto, o benefício proporcionado ao financiador que pretenda se valer da garantia subordinada é infinitamente menor (subordinado e não prioritário) e, além disso, muito restrito (limitado a garantias não fiduciárias).
Semelhante desequilíbrio entre pequenos incentivos e condições muito onerosas acontece no projeto com a possibilidade de propositura do plano de recuperação judicial pelo credor.
O projeto traz importante inovação quanto à legitimidade para propositura do plano de recuperação judicial e passa a prever a possibilidade de credores apresentarem plano alternativo, na hipótese de rejeição do plano de recuperação judicial originalmente proposto pelo devedor (art. 56, § 4º).
Poderia se tratar de importante passo em direção ao restabelecimento do equilíbrio de forças entre devedor e credores – hoje prejudicado, dentre outras razões, pela legitimidade exclusiva do devedor para propor os termos da reestruturação da empresa, combinada com (i) o restrito controle de legalidade exercido pelo poder judiciário quanto ao plano e (ii) a grande perda de valor experimentada pelos credores no cenário falimentar. Contudo, o projeto impõe aos credores que pretendam apresentar proposta alternativa de reestruturação uma série de condições – uma delas, como se verá a seguir, especialmente desarrazoada.
De acordo com o art. 56, § 6º, o plano de recuperação judicial proposto pelos credores apenas será submetido à votação, dentre outras condições (cumulativas), desde que haja apoio de mais de 25% dos créditos sujeitos à recuperação judicial ou, alternativamente, de mais de 35% dos créditos presentes à assembleia em que aprovada a apresentação de plano alternativo.
A mais onerosa e questionável condição imposta aos credores que pretendam apresentar plano de recuperação judicial alternativo, porém, diz respeito à necessária previsão de liberação de garantias pessoais prestadas por pessoas naturais em relação a créditos sujeitos dos credores que (i) componham os percentuais acima indicados como apoiadores do plano de recuperação alternativo ou (ii) aprovem o plano alternativo proposto, sendo vedadas eventuais ressalvas de voto.
Trata-se de exigência que, além de contrariar clara disposição da própria Lei 11.101/05, que prevê que a novação decorrente do plano de recuperação judicial não atingirá coobrigados, fiadores e obrigados de regresso (art. 49, § 1º), desconsidera entendimento consolidado no Superior Tribunal de Justiça em sede de recurso repetitivo (REsp nº 1.333.349/SP)1 e da súmula 581 daquele tribunal2.
Como não poderia deixar de ser, a manutenção das garantias prestadas por terceiros também tem sido reiteradamente defendida pelos tribunais estaduais, mediante a aplicação do disposto no art. 49, § 1º, da Lei 11.101/05 e do entendimento consolidado no STJ3.
Além da falta de qualquer justificativa para a imposição de tal ônus, a liberação de garantias pessoais exigida pelo Projeto dos credores apoiadores do plano de recuperação judicial alternativo sequer benefício econômico poderá proporcionar à empresa em recuperação judicial, na medida em que liberará garantias prestadas por terceiros alheios ao processo. A condição em questão, na verdade, apenas traria benefícios aos acionistas e sócios que, para obterem crédito no mercado a preços mais baixos, outorgaram garantias pessoais às dívidas contraídas pela empresa em recuperação.
Em outras palavras, sob qualquer ótica que se analise a questão – seja pela preservação das garantias prestadas por terceiros assegurada pelo art. 49, § 1º, da lei 11.101/05, seja pelo entendimento consolidado nos tribunais pátrios sobre o tema, ou até mesmo pela inexistência de benefício econômico ao devedor em recuperação – a condição de liberação de garantidores pessoais imposta aos credores que pretendam apoiar o plano de recuperação alternativo carece de fundamento ou de lógica.
Trata-se de verdadeira penalidade que, em última análise, desestimulará por completo o exercício de um importante direito pelos credores. Direito esse que, como indicado, se bem regulado e realmente utilizado, poderia contribuir para o restabelecimento do equilíbrio de forças entre devedor e credores e, consequentemente, para uma negociação mais equânime dos termos da reestruturação da empresa em crise.
Pelos pontos expostos, o projeto de lei de recuperação de empresas e falência carece de maior debate no Senado Federal. É imprescindível que se ajustem os seus dispositivos para se criar estrutura que facilite a superação da crise pelos agentes, devedores e credores, por meio de uma melhoria no ambiente negocial. Trata-se da única forma de se garantir a segurança jurídica de todos os contratantes e a própria preservação da atividade em benefício do desenvolvimento econômico nacional.
*Marcelo Barbosa Sacramone é professor da PUC/SP e do IBMEC São Paulo. Doutor e mestre em Direito Comercial pela USP. Juiz de Direito da 2ª Vara de Falência e Recuperação Judicial do Foro Central da Comarca de São Paulo.
**Fernanda Neves Piva é doutoranda em Direito Comercial pela USP. Mestre em Direito Comercial pela PUC/SP. Professora do IBMEC São Paulo. Advogada.
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1 No âmbito do qual a Segunda Seção da Corte Superior fixou a tese de que: “A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das execuções, nem tampouco induz suspensão ou extinção de ações ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória, pois não se lhes aplicam a suspensão prevista nos artigos 6º, caput, e 52, inciso III, ou a novação a que se refere o artigo 59, caput, por força do que dispõe o artigo 49, parágrafo 1º, todos da lei 11.101/2005”.
2 “A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória”.
3 A título de exemplo, ver TJSP: AI 2146824-93.2020.8.26.0000, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, rel. Des. Maurício Pessoa, j. em 28.10.2020; AI 2168436-87.2020.8.26.000, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresaria, rel. Des. Cesar Ciampolini, j. em 29.9.2020.
Fonte : Migalhas