Não é de hoje que alguns devedores, sabedores de que pedirão recuperação judicial, contratam ou repactuam contratos
Muito se tem falado do comportamento abusivo do credor nas recuperações judiciais, notadamente sobre o exercício do voto em que externa a sua rejeição ao plano de reestruturação das dívidas apresentado pelo devedor.
Algumas decisões judiciais analisam a questão da abusividade do direito do credor à luz do artigo 187, do Código Civil reconhecendo-a nas hipóteses em que o voto exercido desborda a limitação imposta pelos “fins econômicos ou sociais, pela boa-fé ou pelos bons costumes” (TJ-SP, Agravo de Instrumento no 2249013-86. 2019.8.26.0000, j. 03.08.2020).
Não é de hoje que alguns devedores, sabedores de que pedirão recuperação judicial, contratam ou repactuam contratos.
Justificando tal posicionamento, extrai-se de tais entendimentos que, nada obstante os credores naturalmente concorram com o devedor, na medida em que se debate a proposta de novação das obrigações ínsitas à relação contratual existente, esse aspecto não deve afastar o dever de boa-fé que se espera e se exige como norteador do ambiente negocial.
Ocorre que o exercício do princípio da boa-fé contratual é imprescindível não apenas às negociações ocorridas no âmbito recuperacional, mas devem ser adotadas pelos contratantes desde a formação do contrato, na sua execução e na sua conclusão.
E não é só. A boa-fé deve é regra do comportamento do devedor que, em dificuldades econômico-financeiras, pretende se valer dos benefícios estabelecidos na Lei no 11.101, de 2005, e pedir recuperação judicial.
Em acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), recentemente publicado, reconheceu-se o abuso praticado por sociedade empresária que se preparava para pedir recuperação judicial e, mesmo ciente de que não cumpriria ao quanto se obrigaria, distratou contrato de venda e compra de unidade imóvel (Apelação Cível no 1092136-97.2017.8.26.0100, j. 11.02.2021).
Em síntese, ante o atraso na entrega da obra, o compromissário comprador exerceu o direito de ver distratado o contrato, obrigando-se a construtora a devolver o valor por ele pago, em quatro parcelas.
O ponto central da discussão caracteriza-se na circunstância de que o distrato foi assinado em 30 de agosto de 2016, havendo a legítima expectativa do comprador de receber o pagamento da primeira parcela em 30 de setembro de 2016. Contudo, nada foi recebido, uma vez que a construtora pediu recuperação judicial em 28 de setembro de 2016.
O acórdão do TJ-SP, por maioria de votos, deu razão ao compromissário comprador, sob o entendimento de que a recuperação judicial “já estava estruturada e pronta para, com a postergação do pagamento, limpar os contratos que prendiam unidades aos compromissos”, caracterizando “uma estratégia de fraude e que eliminou seus riscos”.
O voto condutor, lavrado pelo Desembargador Enio Zuliani, relator designado para o acórdão, enfrentou a questão sob o prisma do princípio da boa-fé (artigos 421 e 422, do Código Civil), observando que a análise dos fatos permite perceber uma “absurda anormalidade” no comportamento da devedora, ante a caracterização de condutas escusas e repulsivas à moral e às normas legais aplicáveis aos contratos, pois deliberadamente escondeu que o pedido de recuperação judicial estava sendo preparado, o que “representou a quebra da base objetiva do negócio (distrato)”.
O relator reconheceu que, em hipóteses como a ora examinada, rompe-se a base econômica do contrato, na medida em que o vendedor se obrigou a reembolsar ao comprador o valor recebido, mas, de forma ardilosa, pediu recuperação judicial “menos de um mês depois e dois dias antes de vencer a primeira prestação”, forçando uma surpreendente novação e impondo cenário diverso do que justificou o distrato.
A crítica ao comportamento da devedora é relevante, pois, como anotado no voto condutor do acórdão, a decisão de se ajuizar pedido de recuperação judicial não se dá da noite para o dia, até porque demanda reflexão e amadurecimento, ante ao cenário de dificuldades financeiras e de inexistência de recursos para, voluntariamente, adimplir as dívidas que se avolumam, causando um movimento concentrado de credores, principalmente os detentores de garantias, que buscam a satisfação imediata de seus créditos.
Em diversas hipóteses, como a do acórdão aqui estudado, “as circunstâncias não permitiam [e não permitem] qualquer suspeita e sequer exigiam [e não exigem] diligências extras com o intuito de levantar a iminência da recuperação”, ficando “caracterizada a fraude que alimenta o dolo, tal como previsto no artigo 145 do Código Civil”.
Não é de hoje que alguns devedores, inescrupulosos, sabedores de que pedirão recuperação judicial, contratam ou repactuam contratos com os seus credores com a intenção deliberada de descumpri-los, enganando-os de modo a conseguir o benefício legal e, ao final, prejudicando-os.
Esse aspecto está intimamente ligado ao princípio da segurança jurídica que deve ser preservado e nortear as relações entre devedores e credores, ainda com mais atenção nas recuperações judiciais.
O instituto da recuperação judicial, como já tivemos a oportunidade de tratar em opiniões anteriores, não pode ser desvirtuado nem servir para a prática de condutas espúrias, sob pena de ser desprestigiado e considerado instrumento para a legalização de ilegalidades.
Jose Roberto Camasmie Assad tem especialização em Direito Processual Civil pela PUC-SP, LLM em Direito Empresarial pelo IBMEC-SP, onde integra o Núcleo de Pesquisa em Arbitragem, e é coordenador de contencioso cível do escritório Luchesi Advogados.
Fonte: Valor Econômico